Stablecoins em dólar: por que regulamentá-las pode beneficiar os EUA

As stablecoins em dólar já giram mais dinheiro que Visa e Mastercard somadas — mas, apesar de nascerem em blockchains globais, é a legislação de Washington que está prestes a definir as regras desse jogo.

  • Como o GENIUS Act pretende colocar USDC, USDT e futuras stablecoins sob a guarda do Fed — transformando-as num “dólar 2.0” público‑privado.

  • Que ganhos estratégicos isso traz: mais demanda por títulos do Tesouro, reforço da hegemonia do dólar e liderança tecnológica em pagamentos.

  • O preço da inação: risco sistêmico, fuga de emissores para o exterior e abertura de espaço para euros, yuans — ou hackers — dominarem a arena cripto.

Em poucos minutos, você entenderá por que as stablecoins deixaram de ser curiosidade de geeks para virar peça central da política econômica americana E MUNDIAL  — e o que isso significa para o seu bolso, para os mercados e para o poder global do tio Sam.


O que são stablecoins e por que elas importam?

Stablecoins são criptomoedas projetadas para manter valor estável, normalmente atreladas a moedas fiduciárias como o dólar americano. Em vez de flutuarem como o Bitcoin, cada stablecoin equivale aproximadamente a US$1 e é lastreada por reservas financeiras (dólar em caixa, títulos, etc.) que garantem essa paridade. USDT (Tether) e USDC (USD Coin) são atualmente as duas maiores stablecoins, com valor de mercado em torno de US$145 bilhões e US$60 bilhões, respectivamente. Juntas, elas dominam mais de 90% do mercado de stablecoins, que ao todo gira em torno de US$230 a 234 bilhões em circulação hoje. Em outras palavras, quase todo o mercado global de stablecoins é lastreado no dólar, mostrando que o dólar continua sendo a moeda de preferência no ecossistema cripto.

Stablecoins funcionam como “dinheiro digital” na internet: usuários podem transacionar valores em dólares 24 horas por dia, instantaneamente, sem precisar de contas bancárias tradicionais. Por isso, elas são amplamente utilizadas como “cash on-chain” – ou seja, dinheiro vivo nas blockchains – permitindo pagamentos rápidos, envio de remessas e negociação em exchanges de criptomoedas sem os atrasos do sistema bancário convencional. Em 2024, o volume de transações em stablecoins atingiu US$27,6 trilhões, superando inclusive as transações combinadas das redes Visa e Mastercard. Essa adoção massiva indica que as stablecoins se tornaram uma importante infraestrutura financeira global, usada desde traders de criptomoedas até pessoas em países emergentes buscando proteção contra a inflação local.

Gráfico 1: Evolução do valor de mercado das stablecoins (USDT, USDC e outras) nos últimos 4 anos, ilustrando o crescimento rápido do setor. Eventos como o colapso da TerraUSD (UST) em maio/2022 e a crise bancária regional dos EUA em março/2023 afetaram temporariamente a trajetória, mas a tendência geral mostra expansão até alcançar aproximadamente US$234 bilhões em 2025.

O fato de 99% das stablecoins serem atreladas ao dólar americano tornou-se um componente silencioso da influência global do dólar. Em muitos países com moedas instáveis (como Argentina, Venezuela, Nigéria), stablecoins em dólar oferecem refúgio contra a inflação e uma forma de acessar o dólar digitalmente. Elas também facilitam remessas internacionais mais baratas e rápidas, pois alguém nos EUA pode enviar USDC/USDT para um familiar no exterior, que depois troca por moeda local – tudo isso sem passar pelas redes bancárias tradicionais. Assim, mesmo sem o envolvimento direto de bancos americanos ou do Federal Reserve, dólares tokenizados via stablecoins estão circulando e atendendo necessidades no mundo todo. Esse fenômeno representa, nas palavras de analistas, uma “reconfiguração silenciosa” do poder monetário global: o dólar continua onipresente, mas agora trafega também por meio de empresas privadas de tecnologia e redes descentralizadas, paralelamente ao sistema bancário tradicional.

Por que os EUA querem regulamentar stablecoins agora?

Diante desse crescimento explosivo, autoridades americanas perceberam que ignorar ou banir as stablecoins seria um erro estratégico. Em vez disso, estão optando por regulamentar e integrar as stablecoins lastreadas em dólar ao sistema financeiro oficial. Prova disso é a tramitação do “Guiding and Establishing National Innovation for U.S. Stablecoins Act” (GENIUS Act), um projeto de lei bipartidário que cria um arcabouço regulatório para stablecoins de pagamento em dólar. Esse projeto (aprovado em comissão do Senado por 18 votos a 6) define exigências como: emissoras de stablecoin precisam ter licença federal ou estadual, manter reservas 100% lastreadas em ativos seguros, cumprir regras rigorosas de transparência e auditoria, atender à legislação anti-lavagem de dinheiro (BSA/KYC) e garantir resgate imediato das moedas pelo valor em dólares. Importante destacar que o GENIUS Act deixa claro que stablecoins não são valores mobiliários (títulos), afastando a interferência da SEC e encorajando seu uso como meios de pagamento.

Os EUA enxergam a regulamentação não como um endosso irrestrito, mas como uma forma de ter controle sobre algo que já é enorme e impacta o dólar. Conforme ressaltou um conselheiro da Casa Branca para ativos digitais, há um “esforço urgente para manter a dominância do dólar na atividade on-chain”. Ou seja, assegurar que, à medida que as finanças migram para blockchains, o dólar continue sendo a moeda central nesse novo ambiente. Membros de ambos os partidos concordam que os EUA precisam liderar nessa frente para não ficarem para trás – afinal, UE, Reino Unido, Singapura e Hong Kong já avançaram com estruturas regulatórias para stablecoins e criptos. O próprio Secretário do Tesouro (no cenário de 2025) afirmou que o governo “usará stablecoins para manter o dólar como a principal moeda de reserva global”. Em suma, regulamentar stablecoins é visto como uma extensão natural da política de defesa da hegemonia do dólar, adaptada aos tempos digitais.

Do ponto de vista prático, dar um selo regulatório oficial às stablecoins em dólar (especialmente USDC e possivelmente um futuro “USDT” mais transparente) traria
vários benefícios imediatos. Primeiro, aumentaria a confiança dos usuários e investidores institucionais, pois saberiam que aquela moeda digital tem respaldo legal e supervisão – reduzindo o medo de colapsos súbitos. Isso por si só poderia ampliar consideravelmente a demanda por stablecoins em todo o mundo. De fato, o banco Standard Chartered estimou que, com a aprovação de uma lei nos EUA, a capitalização das stablecoins poderia saltar quase 10 vezes, de ~US$230 bilhões hoje para US$2 trilhões até 2028. Esse crescimento massivo projetado indica o tamanho da oportunidade que os EUA não querem perder. A seguir, exploramos em detalhe como os Estados Unidos podem se beneficiar ao apoiar as stablecoins lastreadas no dólar e por que isso pode, paradoxalmente, fortalecer (e não enfraquecer) a supremacia global do dólar.

Vantagens fiscais e monetárias: stablecoins como aliadas do Tesouro e do dólar

Do ponto de vista fiscal, a proliferação de stablecoins em dólar pode se tornar uma aliada inesperada do Tesouro dos EUA. Isso porque os emissores dessas moedas precisam guardar reservas equivalentes em ativos seguros em dólar, e a escolha óbvia são os títulos do Tesouro americano de curto prazo (por exemplo, Treasury Bills). Hoje, empresas como a Tether já são grandes compradoras de títulos do Tesouro – a Tether, sozinha, declara deter mais de US$102 bilhões em T-bills, o que a tornaria a 18ª maior detentora de dívida dos EUA no mundo. Conforme as stablecoins crescem, elas compram cada vez mais desses títulos para lastro. Analistas projetam que, se o mercado atingir o patamar de US$1–2 trilhões nos próximos anos, os emissores de stablecoin passarão a absorver cerca de US$400 bilhões por ano em T-bills novos – volume suficiente para cobrir toda a nova emissão de títulos de curto prazo que o governo americano deve realizar no período. Isso efetivamente transformaria as empresas de stablecoin em uma das maiores fontes de financiamento do déficit público dos EUA (ficando atrás apenas dos fundos de mercado monetário, que hoje detêm ~US$2,4 trilhões). Em outras palavras, as stablecoins podem facilitar o endividamento público a custos baixos, garantindo demanda sólida pelos títulos e espalhando esses papéis pelo mundo.

Gráfico 2: Impacto potencial do crescimento das stablecoins no mercado de Títulos do Tesouro dos EUA. As barras à esquerda mostram o tamanho do mercado de T-bills (~US$6,4 trilhões) comparado ao estoque atual de T-bills mantidos por emissores de stablecoin (~US$120 bilhões). À direita, projeções mostram emissoras de stablecoin podendo deter cerca de US$1 trilhão em T-bills até 2028 (8,3× o nível atual), caso a regulamentação GENIUS Act seja aprovada. Isso implica uma demanda incremental de centenas de bilhões de dólares anuais por títulos, reforçando significativamente o mercado de dívida americano.

Essa dinâmica apresenta várias vantagens para os EUA: (1) Aumento da demanda por dívida americana – com mais compradores assegurados, o Tesouro tem menos dependência de credores estrangeiros tradicionais (por exemplo, China, que vem reduzindo suas reservas em dólar). Ao invés de poucos grandes credores, os títulos ficam disseminados entre milhões de holders de stablecoin no mundo todo, via instituições como Tether e Circle, o que dilui riscos de venda em massa e dá estabilidade ao mercado. (2) Pressão baixista nos yields – maior demanda por T-bills tende a reduzir as taxas de juros que o governo precisa pagar, economizando bilhões em pagamento de juros da dívida. (3) Integração da política monetária – se reguladas, as stablecoins podem ser inseridas no radar do Federal Reserve. Por exemplo, exigindo que reservas fiquem em títulos de até 3 meses, a lei GENIUS alinha as stablecoins à política de taxas de curto prazo do Fed. Além disso, como notou o Tesouro, a demanda por stablecoins deve ter efeito neutro sobre a oferta monetária doméstica (já que cada stablecoin é coberta por $1 em reservas, não expandindo a base monetária), porém atraindo liquidez externa para dentro do dólar. Ou seja, pessoas ao redor do mundo trocam moedas locais ou outros ativos por dólares tokenizados, aumentando a influência global do USD sem inflar a quantidade de dólares em circulação nos EUA – um resultado benéfico para a hegemonia do dólar.
Do ponto de vista monetário e geopolítico, institucionalizar as stablecoins consolida ainda mais o papel do dólar como moeda universal em plena era digital. Hoje, qualquer pessoa com conexão à internet – mesmo em países onde não se consegue abrir conta em dólar – pode manter riqueza em dólar via stablecoins. Isso expande o domínio do dólar para além do sistema bancário ocidental, penetrando em economias emergentes e até em mercados informais. Conforme observou a Standard Chartered, a expansão das stablecoins “reforçaria o papel do dólar no ecossistema digital de ativos”, criando demanda adicional por USD e “sustentando a hegemonia do dólar” no médio prazo. Em termos estratégicos, isso é crucial num momento em que rivais geopolíticos buscam desafiar o dólar – seja promovendo moedas alternativas em comércio bilateral, seja desenvolvendo CBDCs (moedas digitais de banco central) próprias. As stablecoins em dólar atuam como uma resposta orgânica de mercado que contrapõe esforços de desdolarização. Por exemplo, diante de sanções e tensões geopolíticas, países como Rússia e China têm reduzido o uso do dólar; no entanto, cidadãos e empresas ao redor do globo continuam optando pelo dólar através de USDT/USDC, graças à facilidade proporcionada por essas moedas digitais. Assim, paradoxalmente, a existência de dólares “cripto” emitidos por entes privados tem sido um fator de resiliência do poder do dólar – um apoio que os formuladores de política nos EUA agora reconhecem que vale a pena cultivar, desde que sob suas regras.
Outro benefício tangencial é a modernização e liderança tecnológica. Ao abraçar stablecoins reguladas, os EUA catalisam inovação em pagamentos e fintech dentro de sua jurisdição. Bancos e empresas americanas poderão integrar stablecoins em seus serviços (por exemplo, para pagamentos 24/7, remessas baratas, liquidação instantânea de trades), tornando o sistema financeiro mais eficiente e competitivo. Em vez de ver fintechs fugindo para o exterior por falta de clareza legal, o país poderia atrair investimentos e talentos nessa área, tudo orbitando o dólar. Inclusive, grandes instituições poderiam lançar suas próprias stablecoins sob supervisão (imagine um “Stablecoin JPMorgan USD” autorizado) ou tokenizar fundos do mercado monetário em dólares para concorrer com stablecoins – de qualquer forma, é o dólar consolidando seu papel no centro das inovações.

Mantendo o controle: regulamentação e fiscalização estratégica

O GENIUS Act exigirá que apenas “emissores de stablecoin de pagamento permitidos” atuem nos EUA, sob supervisão de OCC, Federal Reserve, FDIC ou reguladores estaduais. Empresas como a Circle (USDC) receberiam um estatuto federal especial, semelhante a uma licença bancária, e emissores estrangeiros — por exemplo a caribenha Tether — teriam de registrar‑se como money‑service business, cumprir regras de AML e sanções, etc. (a Tether já é registrada na FinCEN e coopera com bloqueios de fundos ilícitos). A lei exigiria relatórios auditados de reservas e daria aos EUA poder de supervisão sobre qualquer stablecoin lastreada em dólar, já que o lastro (títulos, depósitos) está majoritariamente sob jurisdição americana.

A regulamentação pode ainda ligar emissores aprovados a contas‑reserva no Fed ou ao reverse repo, reduzindo risco de corridas e criando, na prática, um dólar digital público‑privado: reservas totalmente seguras no Fed, inovação e interface a cargo do setor privado. Com licenças claras, o governo poderia intervir em anomalias — bloquear novas emissões, congelar fundos, ou facilitar a fusão de um emissor problemático — trazendo as stablecoins para dentro do guarda‑chuva regulatório.

Desse modo, os EUA preservam a hegemonia do dólar: as stablecoins tornam‑se extensões do sistema financeiro americano sobre novas plataformas. Washington pode alinhar‑se a Reino Unido, UE, Singapura e outros centros, estabelecendo padrões harmonizados (KYC, bloqueio de endereços sancionados), o que frustra arbitragens regulatórias. Transações on‑chain são rastreáveis e exchanges regulamentadas já coletam dados; ao regular emissores e exchanges, o governo monitora e combate fluxos ilícitos sem prejudicar usuários legítimos.

Riscos de não agir

Se os EUA não regulamentarem as stablecoins:

  • Atividade migra para o exterior – emissores responsáveis (ex.: Circle) buscariam jurisdições mais receptivas, e players opacos como a Tether continuariam offshore, reduzindo transparência sobre reservas e aumentando risco de fraude ou colapso súbito.

  • Perda de influência do dólar – lacunas regulatórias abririam espaço para stablecoins lastreadas em euro, yuan ou ouro, ou algoritmos, erodindo gradualmente o papel do dólar no ecossistema cripto.

  • Atração de atores ilícitos – terroristas, hackers e países sancionados tenderiam a usar stablecoins “piratas”, graças à falta de registro obrigatório e políticas frágeis de AML/KYC, dificultando o enforcement americano.

  • Consumidores e inovação doméstica prejudicados – incerteza jurídica afugentaria investidores e instituições tradicionais; bancos não teriam meios claros de competir emitindo suas próprias stablecoins. Um colapso não supervisionado deixaria usuários sem proteção tipo FDIC.

  • Risco sistêmico e opacidade – sem relatórios auditados ou supervisão, corridas e falências poderiam ocorrer “no escuro”, minando a estabilidade financeira. A S&P Global alerta que, sem supervisão, stablecoins podem “minar a estabilidade financeira, a proteção do consumidor e o bom funcionamento do sistema”.

Em suma, a inação deixaria Washington sem visibilidade nem controle sobre um dólar digital paralelo em crescimento.


Conclusão – dólar forte na era digital

Os EUA avançam para regular e incorporar stablecoins porque isso prolonga a hegemonia do dólar no século XXI. Ao criar um arcabouço claro:

  • garantem que o dólar permaneça onipresente no sistema financeiro digital;

  • colhem benefícios fiscais e geopolíticos (mais demanda por títulos e reservas em dólar);

  • alinham a inovação privada com os interesses nacionais, transformando stablecoins em instrumentos de política pública.

Assim nasce o “dólar 2.0”: nativo do blockchain(privada), mas ainda sob as asas do Tio Sam — uma adaptação estratégica para que a supremacia do dólar se fortaleça em plena transformação digital das finanças globais.

Referências:
1. Standard Chartered (via Coindesk) – “Stablecoin Market Could Grow to $2T by End-2028”, destacando impacto da lei GENIUS Act e demanda por T-Bills.
2. Investing.com – “Stablecoin growth could drive $400 billion a year into T-Bills, says StanChart”, sobre compras anuais de T-bills e suporte à hegemonia do dólar.
3. ZeroHedge – “Tether Stablecoin To The Rescue Of US Treasury”, discutindo USDT como apoio à dominância do dólar e dados de reservas em T-Bills.
4. ZeroHedge – “US Stablecoin Bill Likely In ‘Next 2 Months’...”, citando autoridades dos EUA sobre uso de stablecoins para manter o dólar como reserva global e dominância on-chain.
5. Money Laundering Watch – “AML Aspects of the GENIUS Act”, resumo da lei e status regulatório de USDC/USDT.
6. Relatório do Tesouro dos EUA ao TBAC (2º trim/2025) – análise do mercado de stablecoins e impactos em depósitos bancários, Títulos do Tesouro e oferta monetária.
7. S&P Global – “Stablecoin Regulation Gains Global Momentum”, discutindo importância de supervisão para estabilidade financeira e proteção ao consumidor.
8. DeFi Llama – Dados de capitalização de mercado de stablecoins (abril/2025), mostrando ~99% de dominância de moedas atreladas ao dólar.


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